terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Salazar é mesmo o maior português de sempre

É fácil falar com amigos. É muito difícil falar deles. Criticar um amigo é difícil. Elogiá-lo é dificílimo.
Os amigos não são todos iguais: há aqueles de quem nos sentimos filhos, outros que despertam em nós uma espécie de instinto paternal, outros que são irmãos, outros ainda são vítimas ou carrascos de brincadeiras, nenhum deles menos amigo por isso.
Gosto das pessoas de quem gosto porque são humanas e apesar de serem humanas. Há, a propósito, uma frase que diz mais ou menos isto: apesar de conhecermos os nossos amigos, continuamos a gostar deles. Por isso, não vejo os amigos como heróis imaculados, à excepção de um que quase alcança esse estatuto.
Em quase todos os meus amigos vejo defeitos, alguns deles até irritantes. Devo, no entanto, confessar que desconheço defeitos nesse meu amigo. Aliás, posso dizer que tem tantas virtudes tão irritantes que chegam a ser os únicos defeitos que lhe encontro. Já sei que a sua sincera modéstia vai levá-lo a dizer que estive aqui a dizer disparates, mas terei de lhe perdoar, tal como ele me perdoará por estar a elogiá-lo.
Este meu amigo chama-se Rui Correia e tem a detestável mania de ser genuinamente bom em tudo o que faz. Não vou entrar em pormenores, mas sempre adianto que é professor e exerce essa profissão com a competência e a dedicação a que as suas qualidades como homem o obrigam. É professor de História na Escola Básica Integrada de Santo Onofre, nas Caldas da Rainha, é um daqueles professores que marca qualquer aluno que lhe passe pelas mãos, é um daqueles professores que vive absolutamente a escola em que trabalha, que fez parte de um conselho directivo que revolucionou a escola a ponto de ter sido considerada modelar por mais do que uma entidade, que esteve tão empenhado nesse trabalho executivo como empenhado esteve em não permanecer indefinidamente nesse lugar.
Também sei que a qualidade de uma escola não pode depender só das qualidades de uma pessoa e é evidente que as metas atingidas pela Escola de Santo Onofre se deveram a um conjunto de pessoas que a transformou naquilo que foi. No entanto, a verdade é que há indivíduos que fazem com que um grupo seja melhor e o Rui é um desses indivíduos.
Sei perfeitamente ele preferia que me contivesse até ao silêncio neste elogio público, em que – repito – calo muito mais do que o que digo. No entanto, este encómio não é um fim em si mesmo, pois se estivesse a arder em desejos de elogiar um amigo, bastava-me telefonar-lhe e explicar-lhe como ele é virtuoso e magnífico.
Para cumprir os objectivos que presidem a este texto e justificar o título, acrescentarei apenas que a Escola de Santo Onofre foi um símbolo da resistência às políticas nefandas do consulado de Maria de Lurdes Rodrigues, tendo o Rui estado na linha da frente dessa contestação. Diante dessa resistência, o Ministério acabou por exonerar um Conselho Executivo com mandato até 2010 e nomear uma Comissão Administrativa Provisória que, segundo soube, conseguiu desorganizar uma escola inteira, deitando por terra tudo o que de bom tinha sido feito. Após um processo pouco pacífico, acabou por se formar um Conselho Geral Transitório que – leiam com atenção! – escolheu para director da escola o presidente dessa mesma Comissão, saindo derrotada a candidatura da Presidente do anterior Conselho Executivo.
Durante este tempo todo, o Rui nunca se esquivou a criticar o que devia ser criticado, como nunca se furtou a elogiar quem lho mereça. Se bem o conheço, nunca terá tido problemas em fazê-lo mesmo na presença dos alvos das suas críticas, tendo-o feito também e bem no seu blogue. Foi nesse mesmo blogue que li este texto, carregado de cansaço e revolta, sentimentos infelizmente comuns a muita gente boa, nos tempos que correm.
Neste país tendencialmente democrático em que vivemos, o reaccionário deslumbramento com os títulos ou com os cargos mantém-se, como se mantém a mesma vontade reaccionária de silenciar as vozes incómodas. Chega-se a ministro e faz-se tudo para calar comentadores incómodos ou domesticar televisões. Nas Caldas da Rainha, o Conselho Geral de uma escola, instituição em que não falta trabalho, perde tempo a ler textos de um blogue e a convidar o autor desses textos a explicar-se diante de tão prestigiada assembleia. O Conselho Geral e eu temos uma coisa em comum: lemos com atenção o que o Rui escreve. Há, no entanto, uma diferença a separar-nos: o Conselho Geral tem muito mais tempo livre.
É natural que o Rui ande cansado e é até saudável que comece a ficar farto de desperdiçar palavras com quem só merece palavrões. Sei perfeitamente que o texto que escreveu não é uma desistência, mas apenas a escolha de outro caminho. A verdade é que a mediocridade já não precisa de muito para cair, porque é ela própria uma queda.
Salazar morreu há trinta e nove anos, mas o seu espírito mesquinho mantém-se em cada portuguesinho que anseia por ser familiar da Inquisição, por denunciar quem diz mal, um pidezinho mangas-de-alpaca que corre pressuroso a denunciar ao chefe todo aquele que se destaque. Tendo em conta a quantidade de gente que perpetua o espírito salazarento, não há dúvida de que Salazar é o maior português de sempre.
Homenagear homens raros como o Rui Correia tem, até que me convençam do contrário, efeitos pedagógicos, porque há sempre a hipótese de que os seres inferiores que babam salazarismo e outros fluidos repugnantes aprendam qualquer coisa ou, pelo menos, fiquem calados em casa a lamber as feridas abertas pela sua frustração de serem muito pequeninos e de ficarem com vertigens quando são obrigados a olhar para cima.

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