O futebol é responsável por uma das maiores mutações do mundo contemporâneo: a transformação do ser humano em adepto. Aparentemente, o segundo parece pertencer à mesma espécie do primeiro, mas as semelhanças exteriores disfarçam mal as enormes diferenças essenciais. Trata-se de uma transformação semelhante à dos vampiros que estão na moda, tirando a parte dos caninos desenvolvidos, embora com a mesma sede de sangue.
O homem é um indivíduo. O adepto não existe enquanto indivíduo e, por isso, nunca usa a primeira pessoa do singular. Se o fizer, não estará a ser adepto, podendo, inclusivamente, ser posto de lado pelos restantes elementos da tribo. Aliás, um dos primeiros sinais da transformação do homem comum em adepto é, exactamente, a passagem do “eu” ao “nós”, como se pode verificar no exemplo que se segue em que o cidadão ainda pré-adepto pede uma cerveja ao filho, no momento em que o árbitro marca um penalty contra a nossa equipa: “Ó filho, chega-ME aí uma cerveja. Pronto! Já ESTAMOS a ser roubados!”.
O adepto diz, portanto, “ganhámos” ou “somos os maiores”, entre muitas outras expressões sempre na primeira pessoa do plural. Só há uma palavra que um adepto nunca pronuncia: “perdemos”; em seu lugar, surgirá sempre uma expressão como “fomos roubados”. Aliás, mesmo quando “ganhámos”, “fomos roubados”, o que dá às vitórias um sabor semelhante às épicas batalhas travadas pelos reis fundadores com mais mouros do que estrelas tem o céu. Mesmo que, por vezes, a "nossa" equipa ganhe à custa de um erro de arbitragem, esse será um acontecimento tão fugaz como a passagem do cometa Halley e constituirá uma fraquíssima compensação para os milhares de vezes em que “fomos roubados”.
Um outro aspecto curioso a ter em conta é o facto de o futebol, ao mesmo tempo que transforma o homem em adepto, retira-lhe o gosto pelo próprio desporto. Mesmo que um jogador dos outros tenha driblado toda a gente, incluindo os suplentes e dois fotógrafos, isso foi sorte ou foi um lance “precedido de falta” (“roubados, outra vez, é sempre a mesma merda!”). O que verdadeiramente interessa ao adepto é o resultado do jogo. Há, aliás, adeptos tão fervorosos que preferem nem ver os jogos.
Diz a tradição que o homem é um animal racional. Por isso, o adepto é um ser, só que não humano, tal a suspensão da racionalidade que lhe é intrínseca. O adepto é, muitas vezes, um problema social, podendo tornar-se agressivo para os seres humanos. O pior é saber que, em muitos casos, não chega a haver uma regressão e há muitos que ficam adeptos para sempre.
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