terça-feira, 19 de janeiro de 2010

A superliga do senhor doutor

     Naquele dia, não se pode dizer que o senhor doutor Macedo tivesse acordado, porque quase não chegou a adormecer, passando a noite num estado excitado de vigília, ressonando arritmicamente, enquanto repetia as frases apreendidas ao longo de anos de leitura semiclandestina de jornais desportivos.
     - Trabalhámos muito durante a semana. Não merecíamos uma arbitragem destas. – gritava, sonhando que era um jogador numa revoltada conferência de imprensa no fim de um jogo que, como sempre, não merecia perder. A esposa, treinada em 22 anos de inícios de épocas futebolísticas, já não acordava. Os tampões nos ouvidos também ajudavam.
     O senhor doutor Macedo era um especialista, “modesto embora” nas suas próprias palavras imodestas, em Literatura Renascentista. Na Universidade, alunos e colegas apreciavam o seu rigor afável, inimigo do verbo vulgar, flutuando sempre na estratosfera da etimologia ou na galáxia das citações literárias.
     Só uma coisa o fazia descer, não à terra, mas ao próprio Inferno: o Clube, o Glorioso. O homem sensível que sabia de cor cantos de “Os Lusíadas”, o homem que mal continha uma lágrima ao esmiuçar o “Menina e Moça”, esse mesmo homem, quando o assunto era bola, sofria uma mutação fulminante: se até ali pronunciava cada sílaba com amorosa dicção, passava a cuspir sons animalescos; a delicada organização das frases ficava soterrada por uma enxurrada desconexa de restos de palavras. Nessas alturas, emergia tudo o que era típico do discurso de futebolistas, treinadores, dirigentes e – pasme-se! – comentadores de futebol, chegando a trocar “atitude” por “postura” ou referindo-se gravemente à “falta de objectividade no último terço do campo”
     No estádio, deixava de ser doutor, senhor e até Macedo, pois não respondia ao nome. De resto, era a ementa completa: a culpa dos golos adversários pertencia sempre aos centrais, o desarme de um jogador rival era homicídio de primeiro grau, uma entrada de um defesa do Glorioso igualava sempre a delicadeza do beija-flor, o árbitro tinha sempre uma mãe de vida fácil, os adeptos dos outros eram arruaceiros irrecuperáveis.
     Naquele dia, pois, o senhor doutor Macedo mal conseguiu comer, vítima de uma euforia preocupada, repetindo a mesma graçola: “Superliga... supercampeões”. A esposa nem sequer fingia rir, pois sabia que ele não teria notado, fechado como estava na ansiedade do primeiro jogo.
     Saiu de casa com o cachecol da sorte e juntou-se àqueles a quem reprovava os plebeísmos durante o resto da semana. Quando entrou no estádio cheio, sentiu o arrepio dos grandes dias. Dirigiu-se para o lugar do costume e sentiu-se integrado num rebanho ruidoso. O Glorioso perdeu, com o “penalty” inventado do costume e também por culpa do treinador que “sempre teve uma má leitura de jogo e nunca acertou nas substituições”. Já fora do estádio, num acesso de fúria, rasgou o cartão de sócio, saltando em cima dos pedaços, enquanto alguns correligionários tentavam acalmá-lo, lembrando-lhe os riscos de enfarte e que “aquilo era só um jogo.” Cego, surdo e quase mudo, o senhor doutor Macedo voltou para casa, à medida que o ódio se ia desvanecendo, perguntando-se como era possível ter feito aquelas figuras tristes.
     Entrou em casa, abatido, com olheiras de dias.
     - Acabou-se, nunca mais vou ao futebol.
     - Sim, querido.
     - Não, agora é que é, que isto dá cabo de mim.
     - Sim, querido. Não te esqueças de guardar o novo cartão de sócio. Está no escritório.
     - Obrigado, minha querida.

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